Complemento da Ação: Trata-se de Projeto de Lei Ordinária nº 005/2025, de autoria do Poder Executivo Municipal, protocolado em 11 de fevereiro de 2025, que “AUTORIZA O PODER EXECUTIVO MUNICIPAL A DOAR ÁREAS PÚBLICAS A PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO COM A FINALIDADE DE PROMOVER A POLÍTICA PÚBLICA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL DE ITAPEMIRIM, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”. Nos autos computa-se ainda o Ofício de encaminhamento com pedido de urgência especial, Mensagem ao Projeto de Lei nº 006/2025 e corpo do Projeto de Lei Complementar.
Realizado os presentes procedimentos, de forma preliminar foi encaminhado à procuradoria para manifestação jurídica sobre o projeto de lei sob análise.
Eis o breve relatório.
Inicialmente, destaca-se que a presente manifestação jurídica se limita à análise de questões estritamente jurídicas, não abrangendo aspectos técnicos, econômicos, financeiros, administrativos ou outros que envolvam juízos de conveniência e discricionariedade da Administração Pública. Cumpre ressaltar que, conforme orienta o Manual de Boas Práticas Consultivas da AGU, é vedado ao órgão consultivo emitir pareceres conclusivos sobre matérias não jurídicas, tais como questões de ordem técnica ou administrativa.
A Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB, prevê em seu art. 30, inciso I c/c o art. 8º, inciso I da Lei Orgânica do Município de Itapemirim a competência do Município para legislar sobre matéria de interesse local. Neste mesmo sentido, a Lei Orgânica fixa a competência exclusiva da Câmara Municipal para aprovar, previamente, a alienação e concessão de imóveis municiais (vide art. 13, inciso XIV c/c art. 46 do RI).
Os bens públicos, em regra, são indisponíveis, pois pertencem ao povo e não ao agente público, sendo sua gestão realizada por meio de lei em um regime de democracia indireta. Essa indisponibilidade se manifesta em características como inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade. Contudo, a inalienabilidade aplica-se apenas se estiverem sob afetação pública, ou seja, bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial (art. 100 do Código Civil), enquanto os bens dominicais podem ser alienados, desde que cumpridos os requisitos legais previstos (artigo 101 do Código Civil e no artigo 76 da Lei nº 14.133/2021).
O tema previsto na proposição legislativa já foi objeto de análise pelo Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo – TCEES, que emitiu o PARECER/CONSULTA TC-004/2015 – PLENÁRIO, apresentando parâmetros para doação de imóveis públicos municipais para pessoas jurídicas de direito privado através de programas e políticas de desenvolvimento.
Neste sentido, a matéria relaciona-se ao instituto de alienação, cuja doação é espécie, tendo sido tratada no art. 76 da Lei nº 14.133/2021, que assim dispõe, in verbis:
Art. 76. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:
I - tratando-se de bens imóveis, inclusive os pertencentes às autarquias e às fundações, exigirá autorização legislativa e dependerá de licitação na modalidade leilão, dispensada a realização de licitação nos casos de: (...)
§ 6º A doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente, os encargos, o prazo de seu cumprimento e a cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, dispensada a licitação em caso de interesse público devidamente justificado.
§ 7º Na hipótese do § 6º deste artigo, caso o donatário necessite oferecer o imóvel em garantia de financiamento, a cláusula de reversão e as demais obrigações serão garantidas por hipoteca em segundo grau em favor do doador.
O Parecer Consulta retromencionado registra os requisitos exigidos para doações de bens públicos, como segue:
“No que se refere, no entanto, aos requisitos exigidos para a realização de doações de bens públicos, em especial, a exigência de licitação na modalidade de concorrência, sem dúvida alguma, que se tratam de normas gerais, conforme entendimento do Ministro Relator, na Ação Direta de Inconstitucionalidade referenciada, que assim manifestou-se em seu voto:
O caput do art. 17 veicula, sem dúvida, norma geral, ao subordinar a alienação de bens públicos ao interesse público devidamente justificado e ao exigir a avaliação. O inciso I do mesmo artigo contém, também, norma geral, ao estabelecer que a alienação de imóveis públicos dependerá de autorização legislativa, de avaliação prévia e de licitação na modalidade concorrência, dispensada esta nos casos que enumera nas alíneas a até d. Não vincularia norma geral, na alínea b, que cuida da doação de imóvel, se estabelecesse que a doação somente seria permitida para outro órgão ou entidade da Administração Pública. No ponto, a lei trataria mal a autonomia estadual e a autonomia municipal, se interpretada no sentido de proibir a doação a não ser para outro órgão ou entidade da Administração Pública. Uma tal interpretação, constituiria vedação aos Estados e Municípios de disporem de seus bens, a impedir, por exemplo, a realização de programas de interesse público, tal como ocorre, no caso, conforme noticiado na inicial[...]Empresto, pois, interpretação conforme à Constituição ao citado dispositivo – art. 17, I, b: a expressão – ‘permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo’ – somente tem aplicação no âmbito do governo central, vale dizer, no âmbito da União Federal.”
Reconhece-se a possibilidade de realizar a doação com encargos mediante dispensa de licitação (§6º do art. 76 da Lei nº 14.133/2021), mas essa excepcionalidade só deve ser considerada "quando houver interesse público devidamente fundamentado". Nesse contexto, a análise de mérito foge à competência desta Procuradoria, mas é importante destacar que a primeira opção deve ser a concessão do direito real de uso e, apenas em casos excepcionais, a doação com encargos. Em ambas as hipóteses, é necessário que haja prévia licitação, sendo a dispensa aplicável à doação com encargos somente se for claramente demonstrado o interesse público na sua não realização, o que nos parece uma circunstância bastante difícil de ocorrer, já que a licitação serve precisamente para identificar as propostas mais vantajosas.
Como se pode observar, no entanto, a doação de bens públicos a entidades privadas exige o cumprimento de determinados requisitos estabelecidos no artigo 76 da Lei 14.133/2021, que são obrigatórios para todos os entes governamentais, uma vez que se trata de normas gerais. Esses requisitos incluem: justificativa de interesse público; avaliação prévia; autorização legislativa; encargos com o respectivo prazo de cumprimento, cláusula de reversão sob pena de nulidade, desafetação (se necessário) e procedimento de licitação, ressalvadas hipóteses de dispensa. Por oportuno, observa-se que as menções colacionadas previstas no art. 17 da Lei nº 8.666/93 foram tratadas através do art. 76 da Lei nº 14.133/2021.
Insta salientar que os precedentes caminham no sentido de que é possível a doação de imóveis com encargos desde que sejam cumpridos os requisitos previstos na legislação regente, caso não seja possível ou mais vantajosa a utilização da concessão real de uso e o imóvel não seja proveniente de desapropriação. (Acórdão TCE-PR nº 2315/23 - Tribunal Pleno).
Nota-se que o Projeto de Lei encaminhado ao Poder Legislativo não contempla qualquer referência aos dispositivos legais aplicáveis em sua mensagem/justificativa. Trata-se de matéria de elevada relevância jurídica, uma vez que versa sobre a disponibilização de bens públicos, cujo regramento exige rigorosa observância aos princípios constitucionais e legais pertinentes.
Considerando as informações expostas, verifica-se que a proposta legislativa busca disciplinar, de forma ampla, a autorização para doação de imóveis públicos, condicionando a efetivação de cada doação à edição de lei específica. Contudo, para assegurar a plena conformidade legal, a proposição deve contemplar expressamente os critérios estabelecidos na legislação vigente, não sendo possível ao Município legislar em sentido diverso, conforme delimita o art. 22, inciso XXVII da CRFB, e já assentado no Parecer Consulta TC-004/2015 do Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo.
Dessa forma, torna-se necessário que o Projeto de Lei inclua, além das disposições constantes em seu art. 3º, como exigências mínimas para as futuras leis específicas de doação de imóveis públicos com encargos: (i) a previsão de prazo definido para o cumprimento dos encargos, nos termos do § 6º do art. 76 da Lei nº 14.133/2021; (ii) a desafetação formal dos bens objeto da doação, tratando-se de bem afetado (Parecer Consulta TCEES-004/2015); (iii) a demonstração concreta e fundamentada do interesse público que justifique a doação, conforme previsto no caput do art. 76 da Lei nº 14.133/2021; e (iv) a realização de procedimento administrativo licitatório, salvo nas hipóteses legalmente admitidas de dispensa, com indicação expressa no projeto de lei que precederá a doação específica (inciso I do art. 76 da Lei nº 14.133/2021).
No tocante ao quórum para aprovação do projeto de lei em questão, considerando não haver previsão legal específica em sentido contrário, aplica-se a regra geral disposta no art. 200 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Itapemirim, que exige maioria simples para deliberação da matéria.
Insta salientar que o regime de urgência especial constitui medida excepcional, conforme disciplinado no art. 151 do Regimento Interno, devendo ser concedido apenas quando a matéria, por seus objetivos, exigir apreciação pronta, sob pena de perda de oportunidade ou eficácia. Assim, não restando demonstrados os requisitos legais para sua concessão, especialmente a urgência justificada e a necessidade de deliberação imediata, recomenda-se a adoção do trâmite ordinário, em observância ao devido processo legislativo e ao princípio da legalidade.
Considerando a previsão legal do art. 80, inciso IV do Regimento Interno da Câmara Municipal de Itapemirim, cumpre ressaltar que a matéria deve ser analisada pela Comissão de Finanças e Orçamento, por tratar-se de matéria de interesse do patrimônio público municipal. Ademais, conforme disposto no art. 75, inciso III do mesmo diploma legal, deve ser respeitado o trâmite inicial na Comissão de Legislação, Justiça e Redação Final, antes do encaminhamento à COFINOR.
Diante de todo o exposto, conclui-se que a presente proposição legislativa revela-se juridicamente possível, uma vez que se encontra em consonância com os princípios constitucionais e com a legislação vigente, bem como com a jurisprudência pertinente. Todavia, considerando que se trata de norma autorizativa aplicável a futuras doações de bens imóveis públicos, é imprescindível a sua plena adequação à legislação federal, nos termos do art. 22, inciso XXVII da CRFB combinado com o art. 76, inciso I, e §§ 6º e 7º da Lei nº 14.133/2021.
Assim, recomenda-se a inclusão, como condições obrigatórias para as leis específicas que venham a tratar da doação de bens imóveis públicos, dos seguintes requisitos: (i) fixação de prazo expresso para o cumprimento dos encargos; (ii) prévia desafetação do bem, quando se tratar de bens públicos de uso comum do povo ou de uso especial; (iii) demonstração clara e fundamentada do interesse público que justifique a doação; (iv) indicação expressa do procedimento licitatório a ser adotado ou, se for o caso, da justificativa legal para sua dispensa. Dessa forma, sugere-se que o projeto de lei seja adequado quanto à sua redação, nos termos apontados, e, após as devidas modificações, retorne ao Poder Legislativo para regular tramitação, após sanadas as inconsistências apontadas.
No que tange ao mérito, ou seja, a verificação da existência de interesse público, a Procuradoria Jurídica não irá se pronunciar, pois caberá tão somente aos vereadores no uso da função legislativa, verificar a viabilidade ou não da presente proposição, respeitando-se para tanto as formalidades legais e regimentais.
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