Complemento da Ação: I - RELATÓRIO
Cuida-se do Projeto de Lei Ordinária nº 016/2025, de iniciativa do Vereador Paulo de Oliveira Cruz Neto, que “INSTITUI O SERVIÇO ESPECIAL “IR E VIR”, QUE INTEGRA SERVIÇO PÚBLICO DE TRANSPORTE COLETIVO MUNICIPAL DE PASSAGEIROS DE ITAPEMIRIM-ES”. Consta nos autos o texto integral da proposição, acompanhado de sua respectiva justificativa.
Observados os trâmites regimentais, o projeto foi submetido à publicidade e à deliberação na 7ª Sessão Ordinária do presente exercício legislativo, sendo, na sequência, encaminhado a esta Procuradoria para manifestação jurídica.
II – DA COMPETÊNCIA MATERIAL E LEGISLATIVA
Nos termos do art. 30, inciso I, da Constituição da República, combinado com o art. 8º, inciso I, da Lei Orgânica do Município de Itapemirim, compete ao Município legislar sobre assuntos de interesse local. De igual modo, o art. 23, inciso II, da Carta Magna estabelece ser competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promover a saúde, assistência pública e proteção das pessoas com deficiência. Complementarmente, o art. 24, inciso XIV, prevê a competência concorrente para legislar sobre a proteção e a integração social dessas pessoas.
Além disso, o art. 30, inciso V, da Constituição Federal prevê como competência dos Municípios o provimento do transporte coletivo urbano, enquanto atribuição de natureza material e administrativa. Tal previsão pressupõe que a iniciativa legislativa sobre a matéria caiba ao Chefe do Poder Executivo, detentor das funções executivas no âmbito municipal.
III – DOS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS
O art. 227, § 2º, da Constituição Federal dispõe que a legislação deverá estabelecer normas para a construção de logradouros, edifícios de uso público e fabricação de veículos de transporte coletivo, com vistas a garantir acessibilidade às pessoas com deficiência. No mesmo sentido, o art. 244 da Carta Magna prevê a obrigatoriedade de adaptação dos logradouros, edifícios públicos e veículos já existentes, de modo a assegurar o acesso adequado a tais pessoas, nos termos do art. 227, § 2º.
A Constituição do Estado do Espírito Santo, em seu art. 28, inciso V, estabelece que compete ao Município organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o transporte coletivo, por sua natureza essencial. Ademais, o art. 198, § 2º, do mesmo diploma, assegura o caráter democrático na formulação, execução e controle das ações voltadas à assistência e promoção de direitos de famílias, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência.
Referida obrigação também foi regulamentada em âmbito infraconstitucional. A Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, assegura o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas com deficiência e sua efetiva integração social, impondo ao Poder Público a adoção de medidas concretas para garantir a funcionalidade de edificações e vias públicas, conforme dispõe o art. 2º, inciso V.
A Lei nº 10.098/2000 dispõe sobre normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, por meio da eliminação de barreiras nas vias e espaços públicos, mobiliário urbano, edificações e meios de transporte e comunicação. Em seu art. 53, reforça-se que a acessibilidade é direito que assegura à pessoa com deficiência viver de forma independente e exercer plenamente seus direitos de cidadania e de participação social.
IV – DA RESERVA DE INICIATIVA LEGISLATIVA
O projeto em exame institui política pública voltada ao transporte coletivo, cuja implementação, coordenação e supervisão competem ao Poder Executivo, por meio das Secretarias Municipais de Transporte e Assistência Social. Desse modo, evidencia-se que a matéria se encontra abrangida pela reserva de iniciativa atribuída ao Chefe do Executivo, conforme o disposto no art. 36, inciso II da Lei Orgânica do Município de Itapemirim, art. 63, parágrafo único da Constituição Estadual e art. 61, §1º da CRFB. Dessa forma, a propositura observa os limites estabelecidos nos respectivos dispositivos, aplicáveis em razão do princípio da simetria entre os entes federativos.
Enquanto chefe do Poder Executivo Municipal, ao Prefeito compete a condução das políticas públicas, inclusive na área da saúde, sendo oportuno ressaltar a clara distinção entre as funções da Câmara Municipal e do Prefeito, conforme leciona Hely Lopes Meirelles:
"A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos, autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração”.
Neste linear, a matéria objeto do presente projeto já foi implementada por outros entes federativos, o que demonstra sua viabilidade jurídica e legal. Exemplo disso é a Lei Municipal nº 7.360, de 30 de dezembro de 2015, cuja iniciativa partiu do Poder Executivo local.
Dessa maneira, vislumbra-se vício de inconstitucionalidade formal na proposição, uma vez que embora a matéria tratada não se insere entre aquelas de competência privativa da União (art. 22 da CF/1988), todavia, integra o rol reservado a iniciativa privativa Chefe do Poder Executivo (art. 36, inciso II da LOM, art. 63, parágrafo único da Constituição Estadual e art. 61 §1º da CRFB).
V – DA RESPONSABILIDADE FISCAL E DA PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA
Cumpre registrar que não foram cumpridas as exigências previstas nos incisos I e II do art. 16 da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), com a devida juntada da Declaração do Ordenador da Despesa e do Relatório de Impacto Orçamentário-Financeiro.
Importa destacar que, apesar de constar rubrica orçamentária no art. 13 do projeto, não há qualquer menção, no corpo do texto legal, ao valor estimado da ação governamental proposta. Tal omissão contraria o disposto no art. 110, inciso VII, da Lei Orgânica Municipal, o qual veda expressamente a concessão ou utilização de créditos ilimitados.
VI – DA ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS E IMPACTOS JURÍDICOS
O Projeto de Lei Ordinária nº 016/2025 tem por objeto a criação do “Serviço Especial Ir e Vir”, voltado ao atendimento gratuito de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, integrando o serviço público de transporte coletivo de passageiros no Município de Itapemirim/ES.
O art. 1º do projeto autoriza o Poder Executivo a instituir o Serviço Especial “Ir e Vir” para o transporte gratuito de usuários com deficiência em situação de cadeirante, impossibilitados de utilizar o transporte coletivo regular. O serviço prevê o uso de veículos especialmente adaptados, com operação mediante agendamento prévio pela municipalidade ou entidade delegada, sem itinerário fixo.
Ainda que o texto utilize o verbo “autorizar”, o conjunto normativo impõe obrigações diretas ao Executivo, como a criação do serviço, sua operacionalização, controle logístico e administrativo, indo além da simples autorização. Tal imposição, como já fundamentado, configura vício formal por violação à reserva de iniciativa do Chefe do Executivo. O §2º do mesmo artigo prevê a gratuidade do serviço, estendendo-se aos acompanhantes dos beneficiários quando necessário.
No art. 2º, o projeto dispõe que os veículos adaptados serão cedidos pelo Município à concessionária do transporte coletivo. Trata-se de norma que interfere diretamente no conteúdo de eventual contrato de concessão, criando encargos e atribuições não originalmente previstas.
Os artigos 4º a 9º trazem previsões operacionais complementares ao Executivo, tais como metas de renovação da frota, emissão de relatórios, aquisição de veículos e obrigações de execução. O art. 9º, em especial, impõe ao Município a responsabilidade direta de adquirir os veículos e renovar a frota, o que, por sua natureza, constitui ato administrativo típico do Executivo, inserido no âmbito de sua discricionariedade de gestão e planejamento, atraindo, igualmente, o vício formal de iniciativa indevida.
Quanto à previsão orçamentária, o art. 13 estabelece que a despesa correrá por conta de dotação específica, a ser suplementada, se necessário. Contudo, a norma não traz estimativa de impacto nem identifica fontes de custeio, requisitos indispensáveis para a regularidade da proposição legislativa que implique aumento de despesa pública. A previsão genérica afronta os arts. 15 e 16 da LRF e não atende às exigências do art. 110 da Lei Orgânica Municipal.
Por fim, em complemento à análise jurídica já exposta, destaca-se que, conforme doutrina especializada, a iniciativa parlamentar em matérias cuja execução compete ao Executivo é vedada, ainda que sancionada pelo Prefeito, pois tal sanção não convalida o vício formal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que a sanção não tem o condão de convalidar vício de inconstitucionalidade formal resultante da usurpação da iniciativa legislativa.
(ADI 2867, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 24-10-2003). Além disso, a imposição de obrigações administrativas e financeiras por parte do Legislativo sobre estrutura e contratos em execução viola frontalmente o princípio da separação dos poderes.
VII - CONCLUSÃO
Diante da análise empreendida, conclui-se que, embora o Projeto de Lei Ordinária nº 016/2025 não trate de matéria de competência privativa da União, sua temática envolve política pública cuja implementação, coordenação e execução recaem sobre o Poder Executivo, o que atrai a incidência da reserva de iniciativa do Chefe do Executivo Municipal, conforme estabelecido no art. 36, inciso II, da Lei Orgânica Municipal, no art. 63, § 1º, da Constituição Estadual e no art. 61, § 1º, da Constituição Federal. Além disso, verifica-se ausência de estimativa de impacto orçamentário-financeiro, contrariando os preceitos da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei Orgânica Municipal.
Tais elementos caracterizam vício de inconstitucionalidade formal, não obstante a regularidade da redação e da tramitação legislativa. Assim, esta Procuradoria opina pela inconstitucionalidade formal da proposição, razão pela qual esta Procuradoria opina pela rejeição da proposição em sua forma atual, sem prejuízo de que eventual nova iniciativa legislativa, observado os requisitos legais e constitucionais pertinentes.
No que tange a verificação da existência de interesse público, a Procuradoria Jurídica não irá se pronunciar, pois caberá tão somente aos vereadores no uso da função legislativa, verificar a viabilidade ou não desta preposição, respeitando-se para tanto as formalidades legais e regimentais.
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